Longe vão os tempos em que, na parte Sul da ilha do Pico, os campos apresentavam, em chegando o Verão, belas cearas de trigo, à mistura com os verdejantes milheirais. Hoje é tão diferente passar por esses extensos campos e vê-los quase só destinados a milho “basto” para forragens. Mas nada é novidade. Nestes cinco séculos de vida, que estas ilhas levam, as culturas foram sendo adaptadas às exigências da vida decorrente, sem apelo nem agravo.
O trigo foi o primeiro cereal que os povoadores para cá trouxeram, embora não se adaptasse a todos os terrenos. É o que nos narra Gaspar Frutuoso, quando se refere à chegada dos primeiros povoadores à Ilha de São Miguel e que se fixaram na Povoação: Dizem que estes mesmos
(povoadores) desta primeira povoação foram os primeiros que nesta ilha semearam trigo, e os campos em que foi semeado eram tão abundantes e férteis, que o trigo não dava espiga mas fazia uma cana grossa coberta de grandes e largas folhas, como dizem acontecer no Brasil...” – “E posto que a Povoação que agora se chama Velha, não desse trigo naqueles primeiros anos que o semearam, depois o deu em grande abundância e o melhor da ilha...”(1)
A ilha do Pico, dada a natureza dos terrenos, produzia pouco trigo.
Raro era o ano em que esse cereal sobejava e algum podia ser exportado.
Mais tarde, em 1670, Denis Gregório de Melo, capitão - general dos Açores introduziu a cultura do milho.
A batata branca, ou batata comum, chegou aos Açores e foi distribuída pelas ilhas em 1775; e a batata doce, trazida de S. Miguel, chegou ao Pico em 1860, generalizando-se a sua cultura por toda a ilha. Só mais tarde apareceu na ilha do Faial. Todavia o inhame já era conhecido no Pico, no século XVI (2).
Com a introdução do milho e da batata doce, as culturas do trigo deixou de ter algum interesse passando o trigo a ser um cereal nobre, não só pelo trabalho que exigia, mas também pelo pouco valor nutritivo.
Até meados do século passado o trigo era raramente cultivado e a produção somente destinada a casos especiais, como sejam as funções de Coroa ou casos de doença.
Todavia não deixa de se registar a sua cultura. Os terrenos de natureza especial, principalmente menos pedregosos, eram sempre os mesmos – “o serrado do trigo” era assim designado em cada casal agrícola.
Embora o trigo não fosse cultivado todos os anos, era guardado cuidadosamente para ser utilizado em ocasiões especiais, como sejam:
além das Coroações, os casamentos e baptizados, as matanças dos porcos, as festas da Páscoa e do Natal, e poucas mais.
Muitos lavradores possuíam eiras, utilizadas somente pelos proprietários, vizinhos e amigos. Nesta vila conheci três eiras: uma no alto de Santa Catarina, que ainda lá se encontra, embora arruinada, uma no juncal, perto da entrada do muro do Caneiro, praticamente desaparecida e uma outra, no Verdoso, perto da lagoa interior que lá se encontra e que era constituída por uma grande laje, no meio da qual existia (existe?) um buraco onde era colocado o “moirão”.
O dia da debulha era de festa. Até as refeições eram melhoradas. De véspera trazia-se do baldio ou das pastagens os animais necessários para serem empregados na debulha.
O trigo havia sido apanhado (ceifado) dias antes e disposto, em molhos, junto das paredes do serrado, para enxugarem.
Na eira, enquanto não se iniciava a debulha, algumas senhoras iam escolhendo as palhas mais sãs para a feitura de chapéus e outros artefactos. A restante palha, depois de retirado o grão, era destinada a colchões. A moínha destinava-se à alimentação de animais.
Maria Fernanda Simões escreveu um interessante trabalho sobre o percurso do trigo, como o classificou no Prefácio o Dr. Dinis Borges.
Vale a pena lê-lo. Apesar de estar ausente da terra natal há muitos anos, soube registar em “Saudades dos Tempos Que Já Lá Vão”, uma das fainas mais interessantes da vida campesina e que praticamente desapareceu. É pena.
Permito-me transcrever, do livro citado, estas duas expressivas quadras:
“Não há debulhas nas eiras,
Não há trilho e moirão,
Não há trigo pelas jeiras,
Não há brindeiras de rolão.
Tudo se foi e se abalou.
A ilha é diferente agora,
Apenas a saudade ficou
Desse passado de outrora.”
Vila das Lajes, 25-11-2010
Ermelindo Ávila
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Frutuoso, Doutor Gaspar, “Livro Quarto das Saudades da Terra”- vol.l pág.18 Ávila, E. “Ilha do Pico – Suas origens e suas gentes (Notas Históricas)
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